Sunday 30 January 2022

a Eliete e eu.

A Eliete e eu.
A Eliete que trai o marido para fugir à invisibilidade e sentir-se mais do que o nada que se sente.
Eu que procuro a visibilidade nos olhos dos outros.
A Eliete dos banais olhos castanhos.
E eu, com banais olhos castanhos.
A Eliete que nunca chegou a ser suficiente para os bons empregos da CEE.
E eu que, embora sendo talvez suficiente para os bons empregos da CEE nunca consegui sentir que eles fossem suficientes para justificar uma existência.
A Eliete e eu em busca da magia.
A Eliete e eu em luta com um corpo que imaginamos sem valor, apenas porque é o nosso e não o de outra pessoa 
qualquer.
A Eliete que se sente irremediavelmente só.
Eu que me sinto tão só como a Eliete, mas que de tanto ser só já não sei se saberia ou quereria ser outra coisa.
A Eliete e eu, de realidades tão distintas, mas tão próximas.
A Eliete escapista à procura de uma ilusão de auto-estima induzida pelo desejo básico dos homens
Depois de ter passado uma vida inteira a sentir-se indesejada, indesejável, invisível.
E eu, que tantas vezes imaginei como seria sentir-se vista pelos olhos de um homem
Mas que, se em algum momento me senti observada, tentei a todo o custo deixar de o ser.
A Eliete e eu.
A Eliete que embora sendo protagonista de um livro se sente permanentemente personagem secundária da história da sua vida.
E eu, que talvez também me sinta assim, apesar de não ser protagonista de livro nenhum.
A Eliete que só tem um nome e não sabe bem qual é a sua personalidade.
E eu, que associo os meus dois nomes a duas personalidades diametralmente opostas, que desde sempre se digladiam por esse espaço exíguo que é uma existência.
A Eliete com a avó demente e a mãe amargurada que já desistiu de tentar salvar.
E eu ainda a tentar salvar a mãe da amargura
E a pedir a um deus em quem não acredito que a minha avó nunca fique demente, mas que também não morra.
A Eliete, saída das ideias de uma espécie de génio literário e projectada para o mundo, sem o saber.
E eu, apenas presa nas minhas ideias e a sabê-lo demasiado bem, sem saber no entanto como escapar delas ou deixá-las escapar para poder ser livre.

[Eliete, de Dulce Maria Cardoso]

partidas e regressos.

domingo, 30 de janeiro de 2022

no mesmo dia em que uma pessoa saiu, outra voltou a entrar.

no mesmo dia em que me disseram que "falta-nos muito sal" (e creio este verbo reflexo conjugado na primeira pessoa do plural foi, na verdade, um eufemismo para evitar conjugá-lo na segunda pessoa do singular) disseram-me "gosto de ti. se eu me for embora não me deixes ir".

a vida é um carrossel grotesco, que tanto nos esmaga no ímpeto da descida como nos mantém suspensos de emoção nas subidas, e nós nunca chegamos bem a perceber onde estamos, para onde nos leva ou o que podemos fazer para guiar o carrossel para algum lugar onde tenhamos paz.

no mesmo dia, instalei uma app para conhecer pessoas baseada nos perfis MBTI ('So Syncd'), achei o conceito interessante, vi que estava quase deserta, aborreci-me e desinstalei passado umas horas. fiz apenas um match e comecei a falar com uma pessoa que, ao que parece, já passou por paragens bastante sombrias na sua viagem relacional.

acordei de madrugada e li praticamente metade do livro "A Campânula de Vidro" (para minha própria estupefacção), antes de ir votar às 8h30 e de me decidir a exigir a comunicação de alguém que, no momento em que começou a aproximar-se, parecia dar sinais de nunca vir a forçar-me a desempenhar esse triste papel, mas que no final se revelou igual à média masculina no que diz respeito à capacidade de comunicação e à coragem de informar claramente que já não está interessado.

o dia passou-se entre lágrimas e névoa mental.

à noite vi "a grande beleza", e a frase do filme "perché elisa mi ha lasciato?" deu o mote para uma conversa que deveria ter acontecido há quase dois anos. o desenrolar da conversa foi surpreendemente diferente de tudo o que eu pudesse ter imaginado, e escancarou novamente uma porta que eu julgava ter fechado, mas que afinal, ao que parece, estava apenas entreaberta.


Saturday 29 January 2022

 há dias que mais parecem noites, tal é a escuridão que se instala na nossa cabeça, não obstante o brilho do sol de inverno que entra pelas janelas e me ilumina a casa em quentes tons dourados.

são dias em que vamos sentindo a energia esvair-se e por mais que se tente não encontramos respostas para contrariar esse misterioso fenómeno físico.

nesses dias, gostava de ter um comando que me permitisse avançar directamente para o dia seguinte, ainda que sem garantias de que esse fosse melhor.


Tuesday 25 January 2022

sobe o pano.

Começa hoje esta tentativa de dramaturgia. Numa madrugada em que estou acordada após ter ido dormir às 20h00, ao final de um dia a lutar contra o peso do sono nos olhos. Sinto, há muito tempo, que as palavras esperneiam dentro da minha cabeça e me exigem um enorme esforço para as manter aprisionadas, uma energia que poderia canalizar para outras coisas se, simplesmente, aceitasse deixá-las livres.

A vida detrás da cortina será isso. Um exercício catártico, terapêutico. Uma espécie de journaling sem atenção a qualquer pretensa qualidade literária ou temática. Um blog como chave de libertação do caos que mora no sótão. Também poderia fazê-lo da forma tradicional, com caneta em papel, mas doem-me as mãos e não consigo manuscrever à velocidade a que penso. Também não consigo dactilografar a essa velocidade, mas aproximo-me um pouco mais.

Este espaço será também abrigo, partilha e aceitação, onde aprendo a enfrentar o facto de a vida de todos os dias, a minha, pelo menos, ser assim: monótona e caótica, emocionante e aborrecida, amedrontada e sonhadora, talvez como a sua própria protagonista. E como os protagonistas têm que ir à boca de cena, nem que seja no final do espectáculo para agredecer ao público, aqui "detrás da cortina" será também espaço de exposição, lugar onde aprender que ao mostrarmo-nos não acontece nada.

Escrevo isto enquanto deveria estar a fazer um trabalho para entregar, cuja deadline foi há dois dias. Talvez em parte para provar a mim mesma que o bloqueio mental não é geral, mas sectorial, que ainda consigo escrever, mas talvez, simplesmente, não me apeteça escrever um plano de comunicação interna para uma organização semi-fictícia. Para demonstrar que posso permitir-me fazer coisas só porque me apetece e não por obrigações externas ou auto-impostas, e que tudo isso é uma forma da sacrossanta liberdade que tanto busco há mais de trinta anos (desde antes até de imaginar o que seria tal palavra).

Ontem - enquanto deveria estar também a fazer o mesmo trabalho, mas ainda sem ter encontrado vontade - acabei de ver a série 'Freud' na Netflix. Embora a série seja essencialmente uma viagem entre o grotesco e o bizarro, com pouco sumo no que à teoria freudiana diz respeito, atentei numa frase que o personagem principal diz no final: algo do género de nos tornamos aquilo que queremos ser, no mais fundo do nosso inconsciente. Fiquei a pensar naquilo, a perguntar-me se o meu inconsciente quererá que eu me sinta uma incapaz, e por que razão isso acontece, se for, de facto, o caso. Ainda não encontrei a resposta.



envelhecer

o tempo vai passando por nós e não sabemos exactamente o que fazer dele. envelhecemos. pensamos que ficamos mais sábios, mas estamos apenas ...