Saturday 11 May 2024

envelhecer

o tempo vai passando por nós e não sabemos exactamente o que fazer dele.

envelhecemos. pensamos que ficamos mais sábios, mas estamos apenas mais feridos.

contínua e irreparavelmente feridos.

a certa altura, sem nos termos apercebido, não conseguimos sequer separar a ferida daquilo que somos, de tal forma foi ocupando todo o espaço.

quando somos jovens, temos do nosso lado (ou deveríamos ter) a inconsciência da juventude, a intrepidez de quem não sabe que o futuro é curto e povoado de fantasmas do passado que se vão acumulando até formarem uma multidão maior do que a dos vivos que nos rodeiam. alguns de nós, porém, não chegam a ter esse privilégio.

vivem desde jovens atormentados por fantasmas que lhes são apresentados antes do tempo. os que os outros lhes impõem e os que eles próprios acabam por inventar, talvez na busca inglória de alguma companhia que lhes seja familiar.

buscamos a felicidade. imaginamo-la, mas parece que está sempre uns passos à nossa frente (e a morte sempre atrás de nós a uma distância que vai encurtando). uns anos adiante, com outras pessoas, com uma versão futura e melhorada de nós mesmos.

no fundo, talvez seja essencialmente uma questão de culpa. não sei exactamente de quê, mas desconfio que seja a culpa de não sermos perfeitos. de não sermos quem idealizámos ser e quem acreditamos que os outros esperam que sejamos.

é possível que "os outros" não esperem tanto de nós. que não estejam agarrados a uma noção de perfeição que em vez de libertar, oprime.

mas não sabemos. não temos como saber e não saberemos nunca, e essa falta de informação dilacera, principalmente as pessoas que já estão fragmentadas, esmagadas por essa culpa insidiosa e indizível.

a culpa surgiu como uma espécie de iluminação na última sessão de terapia e, de repente, é como se quase tudo fosse explicado pela sua existência.

todos os fracassos, toda a inquietude, toda a frustração, aparentemente, resultam de uma única fonte: a culpa que não se sabe onde está ou de onde vem, e por isso não se consegue agarrar.





Monday 9 October 2023

'Stop all the clocks, cut off the telephone'

 

'Stop all the clocks, cut off the telephone'

Stop all the clocks, cut off the telephone, 
Prevent the dog from barking with a juicy bone, 
Silence the pianos and with muffled drum 
Bring out the coffin, let the mourners come. 

Let aeroplanes circle moaning overhead 
Scribbling on the sky the message He Is Dead, 
Put crepe bows round the white necks of the public doves, 
Let the traffic policemen wear black cotton gloves. 

He was my North, my South, my East and West, 
My working week and my Sunday rest, 
My noon, my midnight, my talk, my song; 
I thought that love would last for ever: I was wrong. 

The stars are not wanted now: put out every one; 
Pack up the moon and dismantle the sun; 
Pour away the ocean and sweep up the wood; 
For nothing now can ever come to any good. 

W H Auden

Thursday 28 September 2023

o bar de jazz.

era um conceito de gosto, mais abstracto do que posto em prática.

no entanto, um conceito de gosto que tinha muito claro na sua mente e que transmitia sem hesitação como resposta às frequentes perguntas "que estilo de música preferes" ou "onde costumas sair à noite", que grassavam nas aplicações de encontros sempre que a conversa conseguia superar a barreira do "olá, tudo bem?".

e assim lhe respondera quando ele lhe perguntara algo sobre "em que rádio poderia ouvi-la a cantar", abrindo a porta ao tema do jazz, essa música que era para ela fonte de concentração, salvação e ânsia de libertação.

passaram dois ou três dias de mensagens esporádicas até ele sugerir de forma espontânea uma saída cultural para um concerto de jazz num bar que, para espanto dela, ficava a cinco minutos de casa (surpreendeu-se e recriminou-se secretamente pelo facto de não conhecer aquele bar, ao fim de oito anos a viver naquela zona de Lisboa), e após algumas confusões mentais com datas e agendas, lá se combinou o encontro, sem grandes expectativas de parte a parte.

o espaço era pequeno e agradável, com as luzes baixas durante o espectáculo a criar aquele ambiente que lhe relaxava os sentidos e estimulava uma sensação de casa. silencioso, sem ruídos de fundo além da música que se ouvia.

curiosamente, um dos dois músicos que actuavam naquela noite era uma pessoa com quem também fizera match na aplicação alguns dias antes, pela mesma altura em que conhecera a pessoa com quem se encontrava ali. um dos típicos perfis egocêntricos e self-entitled que responde à primeira mensagem para dizer que "é mais fácil pelo Instagram", ganhar uma nova seguidora para a divulgação do seu trabalho e nunca mais retomar o contacto.

a vida tem destas coisas curiosas: há, de facto, muitos peixes no mar e muitos homens nas dating apps.

Wednesday 13 September 2023

restam-nos as palavras.

a vida enrola-se-nos como as ondas do mar que rebentam na areia.

há dias que começam com uma ordem quase perfeita e acabam em caos profundo. ontem foi um desses.

acordei de madrugada, antes das quatro da manhã pelo segundo dia consecutivo, sem entender bem porquê mas também sem grandes sinais de cansaço, pelo que fiquei deitada a explorar as maravilhosas possibilidades do Linkedin e da internet em geral.

Enviei candidaturas, consegui reservar aula no ginásio, fiz alguns contactos que obtiveram resposta, escrevi antes das sete da manhã no whatsapp ao meu chefe e consegui uma aprovação que estava pendente. Pelas oito da manhã daquela terça-feira solarenga de setembro a minha vida estava orientada e tudo parecia correr bem.

Passei no supermercado a caminho do comboio e comprei um pudim proteico de chocolate que seria o meu pequeno almoço - acabou por ser, na verdade, a única refeição que fiz durante todo o dia, além de uma banana.

Transportes sem atrasos, cheguei ao gabinete a horas, usufruindo da sensação de bem-estar que me proporciona a execução das tarefas quotidianas conforme as imagino primeiro na minha cabeça.

perdi a hora de almoço na consulta de triagem na clínica universitária (toda uma experiência) e com isso acabei por me esquecer de almoçar, entre reuniões e atendimentos não programados, além da montanha de burocracia que não pára de acumular.

de repente, uma mensagem inesperada no instagram foi o gatilho para uma série de informações novas, semi-antigas e desconhecidas, e para uma conversa que deveria ter acontecido com a mesma franqueza num outro tempo, quando as escolhas ainda eram possíveis.

ou a escolha do meu lado, em todo o caso. a outra pessoa fez a sua escolha e continua a ter a sua margem, ainda que se encontre agora à mercê das razões e das escolhas de uma nova pessoa.

novelos relacionais e de ideias demasiado emaranhados (quem sabe se impossíveis de deslindar), que pensávamos estarem já devidamente arrumados e perdidos no fundo de uma arca escura, mas afinal ressurgem e percebemos que ainda têm algum potencial destruidor.

a minha onda de produtividade do dia foi assim interrompida por essa conversa que jamais teria imaginado que pudesse acontecer, passado que estava o tempo e depois de me ter sido comunicado com toda a clareza "tenho uma namorada". nesse dia creio que terei chorado um pouco, cheguei à conclusão de que 100% dos meus ex-namorados têm as suas vidas orientadas e estão em novas e sólidas relações (não sei se felizes ou apenas banais), enquanto eu continuo a navegar à deriva e com a bússola cada vez mais destruída. também nesse dia, foi como se tivesse morrido algo em mim (talvez a esperança?) e apaguei conversas, silenciei stories, fiz o que se faz nestes tempos modernos para tentar eliminar alguém que só existe na nossa vida de maneira virtual, mas sem cortar todas as pontas.

aparentemente, ele foi mais radical e apagou o meu número, razão pela qual a conversa desta vez foi iniciada pelo Instagram. embora tenha contribuído para apaziguar um pouco em mim a dúvida inelutável e persistente sobre a minha insignificância na vida desta pessoa, deixou-me também na boca o sabor agridoce de saber que, ainda que eu possa ser importante, no momento da escolha não sou nunca eu a pessoa que merece ser escolhida. 

saber isso causa em nós uma ferida maior do que talvez pudéssemos imaginar à partida, e receio que no meu caso estas ferias consecutivas se vão sobrepondo umas às outras, criando uma ilusão de cicatrização que não é real, e que por baixo da pele aparentemente mais resistente esteja um buraco cada vez mais e uma infecção latente, à espera do momento certo para se espalhar por todo o lado.

nunca serei eu a escolhida mas, aparentemente, vou permanecendo de alguma forma na memória destas pessoas, enquanto vão construindo as suas seguras vidas convencionais e (aparentemente) felizes como se eu não tivesse existido neste mundo no mesmo tempo e espaço do que elas e os nossos caminhos não se tivessem alguma vez cruzado.

sigo também eu o meu caminho, entre o trabalho inútil e as minhas actividades quotidianas (coro e ginásio) que ajudam a salvar-me ao preencherem parte do vazio existencial causado pelas dúvidas que estas pessoas deixam em mim sobre a minha validade enquanto pessoa e sobre o sentido de tudo em geral, e o da minha vida em particular.

e no dia seguinte, lidas as mensagens que trazem as novidades e apagadas em seguida (não sei antes serem cristalizadas em screenshots para referência futura), chora-se mais um pouco, prepara-se o discurso irónico-cómico sobre a enésima situação absurda que me tocou, e a vida continua.

Monday 10 July 2023

O Acontecimento, Annie Ernaux

Sinto que a narrativa me arrebata e, sem eu saber, impõe um sentido, o da infelicidade inelutavelmente a caminho. Obrigo-me a resistir ao desejo de deixar resvalar os dias e as semanas, tentando manter por todos os meios - pela procura e a descrição dos pormenores, o uso do imperfeito, a análise dos factos - a lentidão interminável de um tempo que, sem avançar, ia ganhando espessura, como acontece nos sonhos.

lá está o mar

 - Estás a vê-lo? Lá, como nas histórias. Atravessando o arco de entrada do templo dos sonhos, lá, lá está o mar.

Luis Sepúlveda, Encontros de Amor num país em guerra

voyager

 “Voyager, c'est bien utile, ça fait travailler l'imagination. Tout le reste n'est que déceptions et fatigues. Notre voyage à nous est entièrement imaginaire. Voilà sa force.

Il va de la vie à la mort. Hommes, bêtes, villes et choses, tout est imaginé. C'est un roman, rien qu'une histoire fictive. Littré le dit, qui ne se trompe jamais.

Et puis d'abord tout le monde peut en faire autant. Il suffit de fermer les yeux.

C'est de l'autre côté de la vie.”

― Louis-Ferdinand Céline, Voyage au bout de la nuit


envelhecer

o tempo vai passando por nós e não sabemos exactamente o que fazer dele. envelhecemos. pensamos que ficamos mais sábios, mas estamos apenas ...